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A ascensão da Bitcoin no Irão: uma resposta à inflação e à repressão

by Thomas

Num Irão confrontado com sanções internacionais e uma inflação galopante, um estudo revela uma adoção crescente da Bitcoin (BTC) e de outras criptomoedas. Diz-se que 25% dos iranianos estão a utilizar criptomoedas para fazer face à desvalorização da sua moeda, o rial, e ao regime autoritário em vigor. Esta tendência levanta questões cruciais sobre o impacto das criptomoedas em contextos económicos e políticos complexos.

Quais são as razões por detrás da adoção do Bitcoin no Irão?

Um estudo publicado pela Adopt a Block explora a utilização da Bitcoin (BTC) no Irão, um país sob a governação de um regime autoritário e que enfrenta sanções internacionais impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia. O estudo revela uma adoção crescente de criptomoedas no país, atribuível a uma série de factores económicos e sociais.

O rial iraniano (IRR) tem sofrido uma inflação elevada, que ascendeu a cerca de 40% por ano nos últimos 5 anos. Em consequência, a moeda desvalorizou 95% na última década.

Taxas de inflação no Irão desde 1960

Taxas de inflação no Irão desde 1960


Os números oficiais apontam para uma taxa de desemprego de 7,5% em 2023 para o conjunto da população, valor que sobe para uma média de 20,5% entre os jovens. De acordo com os testemunhos relatados pelo estudo, muitos iranianos recebem a totalidade ou parte do seu salário informalmente, contornando assim uma tributação excessiva que reduziria significativamente o seu poder de compra, já enfraquecido pela inflação.

O governo da República Islâmica do Irão é descrito como totalitário, praticando a repressão política, a censura da informação, a violação dos direitos humanos e a restrição das liberdades políticas.

O poder está concentrado nas mãos do Líder Supremo, cargo atualmente ocupado por Ali Khamenei, que limita a participação política e as liberdades individuais. Por exemplo, a repressão dos dissidentes, a censura dos meios de comunicação social e da Internet e a vigilância apertada da vida privada dos cidadãos são práticas correntes.

Perante a repressão governamental, eclodem regularmente manifestações no Irão, que acabam frequentemente em repressão violenta por parte das autoridades. Desde 1979, estima-se que cerca de 4 000 pessoas tenham sido mortas e 36 000 detidas.

Em 2022, a morte de Mahsa Amini, uma jovem detida por usar um hijab considerado inadequado, desencadeou protestos a nível nacional, revelando uma profunda insatisfação com o regime. Estas manifestações provocaram a morte de mais de 500 pessoas, a execução de 7 indivíduos e a detenção de cerca de 20 000 pessoas.

Apesar destas dificuldades, a população iraniana está a encontrar formas de contornar as proibições e sanções, incluindo a utilização da Bitcoin como alternativa para escapar às restrições financeiras e aceder a produtos e serviços proibidos.

Como é que os iranianos estão a utilizar as criptomoedas?

Os iranianos utilizam principalmente 2 criptomoedas no seu quotidiano: Bitcoin, uma rede de troca de valores descentralizada e resistente à censura que funciona sem uma autoridade central – uma caraterística que torna extremamente difícil bloquear ou proibir, e USDT, a moeda estável mais capitalizada do mercado, emitida pela empresa norte-americana Tether.

Outros blockchains, como o Ethereum (ETH), oferecem características relativamente semelhantes de resistência à censura e permitem a troca de stablecoins como o USDT da Tether.

Cryptos para combater a inflação

O estudo Adopt a Block destaca que muitos iranianos estão a recorrer ao BTC e ao USDT principalmente para preservar o valor da sua riqueza, num cenário em que o rial perdeu 95% do seu valor em 10 anos.

Preço da Bitcoin face ao dólar (laranja) e ao rial iraniano (azul)

Preço da Bitcoin face ao dólar (laranja) e ao rial iraniano (azul)


O dólar americano, embora mais estável, ainda perdeu 25% do seu valor desde 2014. O Bitcoin, por outro lado, provou ser o ativo com melhor desempenho da década, atingindo recentemente um máximo histórico de mais de 25 mil milhões de riais, em comparação com 19,5 mil milhões em novembro de 2021, quando o Bitcoin atingiu um pico de 69.000 dólares.

Para contornar a censura do governo

A utilização de Bitcoin e USDT permite aos iranianos contornar a censura governamental, oferecendo-lhes formas de contornar as proibições nacionais, ao mesmo tempo que lhes facilita a realização de pagamentos internacionais.

Graças a estas criptomoedas, muitos produtos e serviços podem ser adquiridos de forma discreta, principalmente devido à proibição governamental destes produtos.

Um cidadão iraniano, citado no estudo, explica a importância do Bitcoin para ele:

“Estamos muito orgulhosos do Bitcoin.
Nem sequer temos acesso ao sistema financeiro global e muitas rotinas diárias que os jovens dos países ricos tomam como garantidas são inacessíveis para nós. Por exemplo, o nosso acesso ao Spotify é limitado. Muitos podem achar isto divertido, mas estamos a lutar contra dois inimigos: o inimigo interno, que nos impôs muitas restrições e nos privou da nossa liberdade, e o inimigo externo, cujas sanções afectaram diretamente a vida das pessoas comuns. […] “

Ele continua:

Pode ser difícil de acreditar, mas ter acesso a uma Internet livre tornou-se um objetivo importante para nós. […] O ponto-chave aqui é que as criptomoedas no Irão são usadas principalmente para armazenar valor. As pessoas no Irão fazem frequentemente fila para comprar dólares em dinheiro, que agora escasseiam. “

Quais são as barreiras à adoção do Bitcoin no Irão?

O estudo também partilha uma experiência conduzida por um iraniano sobre as barreiras à adoção da Bitcoin no Irão.

De acordo com esta experiência, o acesso a informações relevantes sobre a Bitcoin não é particularmente difícil, embora a fluência em inglês seja uma vantagem. Há muito conteúdo nas redes sociais, nomeadamente no YouTube e no Telegram, que populariza a Bitcoin e explica como criar, proteger e utilizar uma carteira Bitcoin ou Lightning, por exemplo.

No entanto, o risco de cortes prolongados de energia ou de Internet é apontado como um problema potencial. Este risco aplica-se a todos, mas sobretudo aos iranianos. Em vários locais do mundo, governos autoritários recorreram a este tipo de prática durante revoltas, o que também pode acontecer no Irão.

Além disso, apesar da corrupção do sistema bancário iraniano, a população mantém um certo grau de confiança na segurança do numerário em relação ao dinheiro digital. A maioria dos iranianos acredita que as moedas nacionais, com exceção do rial, são lastreadas em ouro, quando, na realidade, nenhuma moeda fiduciária foi lastreada em ouro desde o fim do sistema de Bretton Woods, na década de 1970.

Outros desafios enfrentados por este cidadão iraniano incluem a atração de criptomoedas mais arriscadas para os locais, uma preferência por manter activos em plataformas de câmbio centralizadas (CEX) e uma falta geral de interesse em aprender a usar o Bitcoin como uma nova tecnologia monetária.

Um quarto dos iranianos detém criptomoedas

O autor do estudo, perante a dificuldade de obter uma visão exacta da realidade a partir de testemunhos, prossegue a sua investigação com base num relatório publicado pelo jornal iraniano ArzDigital, intitulado “The Cryptocurrency Space in Iran – 1402”.

O relatório revela que, em 2023, 25% dos iranianos possuíam criptomoedas e 29% disseram que tinham no passado.

Entre os iranianos que possuem criptomoedas:

  • 38.10% não investiram em nenhum outro mercado;
  • 53% estavam em perda em novembro de 2023;
  • 61% investiram antes de 2021;
  • 82,10% estão a investir para combater a inflação;
  • 21,90% utilizam finanças descentralizadas (DeFi);
  • 9,60% usam criptomoedas para transferir ou receber dinheiro do exterior;
  • 7,70% usam criptomoedas para comprar bens ou serviços;
  • 76,6% acreditam que as sanções internacionais são uma barreira para aceder a criptomoedas;
  • 57,20% acreditam que as restrições de acesso à Internet são um obstáculo.

Bitcoin é a criptomoeda mais popular nas carteiras iranianas, seguida por Dogecoin (DOGE) e Shiba Inu (SHIB). O Ethereum (ETH), no entanto, está apenas em 5º lugar, atrás do Cardano (ADA).

De referir ainda que, nos últimos anos, foram criadas várias plataformas locais de troca de criptomoedas. 84,10% dos investidores inquiridos afirmaram que as utilizam porque oferecem a vantagem de poderem pagar diretamente em rial, e 34,70% preferem-nas porque as aplicações estão em farsi, a língua mais falada no Irão, o que sublinha a importância de ter documentação redigida na língua local.

No entanto, 52,70% destes utilizadores consideram que as comissões de levantamento são demasiado elevadas. Uma das pessoas entrevistadas no relatório Adopt a Block mencionou uma otimização para contornar estas taxas, realizando uma “troca atómica” via Boltz, retirando BTC através da Lightning Network antes de os receber na cadeia. Esta operação permitiria economizar cerca de 90% das taxas normalmente pagas às plataformas.

O Governo iraniano introduziu medidas regulamentares para as criptomoedas, nomeadamente exigindo uma licença para a extração de Bitcoin, a fim de gerir melhor o consumo de energia.

Além disso, as transacções nas plataformas de câmbio estão sujeitas a restrições e estas devem estar registadas no Banco Central para serem autorizadas a funcionar. Atualmente, as mais-valias realizadas em criptomoedas não são tributadas, uma vez que foram rejeitadas várias propostas de tributação.

Como tal, 65% dos iranianos consideram a regulamentação das criptomoedas moderada.

Bitcoin é mais do que um ativo especulativo

Para os iranianos, o Bitcoin é muito mais do que um ativo especulativo; incorpora uma forma de liberdade das restrições governamentais.

A sua crescente adoção no Irão é promissora e poderá desempenhar um papel fundamental na economia do país. No entanto, continuam a existir desafios, como a volatilidade do preço da Bitcoin e a necessidade de educar os utilizadores sobre a forma de a utilizar nas melhores condições, nomeadamente do ponto de vista da segurança.

Além disso, os elevados custos de transação incentivam frequentemente os utilizadores a recorrer a soluções mais centralizadas, como as bolsas ou as carteiras de custódia. Estão a ser desenvolvidas alternativas que deverão melhorar estas deficiências no futuro.

O Irão está a passar por mudanças económicas significativas, nomeadamente através da sua integração nos BRICS e da sua aliança económica com a Rússia, o que poderá atenuar as restrições ocidentais e melhorar a qualidade de vida da sua população.

Além disso, a adoção da Bitcoin poderá incentivar o aparecimento de uma economia paralela, libertando a população das restrições internacionais.

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